sábado, 30 de agosto de 2008

"Quero ser tambor", de José Craveirinha

Tambor está velho de gritar.
Ó velho Deus dos homens
deixa-me ser tambor
só tambor gritando na noite quente dos trópicos.

E nem flor nascida no mato do desespero.
Nem rio correndo para o mar do desespero.
Nem zagaia temperada no lume vivo do desespero.
Nem mesmo poesia forjada na dor rubra do desespero.

Nem nada!

Só tambor velho de gritar na lua cheia da minha terra.
Só tambor de pele curtida ao sol da minha terra:
Só tambor cavado nos troncos duros da minha terra!

Eu!
Só tambor rebentando o silêncio amargo da Mafalala
Só tambor velho de sangrar no batuque do meu povo.
Só tambor velho perdido na escuridão da noite perdida.

Ó velho Deus dos homens
eu quero ser tambor,
E nem rio,
e nem flor
e nem zagaia por enquanto
e nem mesmo poesia.

Só tambor ecoando a canção da força e da vida
só tambor noite e dia
dia e noite só tambor
até à consumação da grande festa do batuque!

Oh, velho Deus dos homens
deixa-me ser tambor
só tambor!
(Karingana Ua Karingana)

Perfil: José Craveirinha (1922- ). Destacado jornalista e poeta, teve participação ativa nas denúncias de injustiças e opressões sofridas por seu povo durante o regime colonialista, que culminaram com a independência de seu país. O uso da efabulação e de metáforas é marcante em sua obra e foram os instrumentos de que se valeu como poeta para atuar em diversos países do mundo e conseguir a simpatia imprescindível à causa de seu povo. É na atualidade o escritor moçambicano mais lido no exterior.
Obras” “Chibugo” (1964), “Cântico a um Dio de Catrame” (1966), “Karingana Ua Karingana” (1974), “Cela I” (1980) e “Tingolé” (1982).
Fonte: “Antologia escolar”, org. de Iguamir Antonio Marçal. Biblioteca do Exército, RJ, 1995.

"Onze anos, última morte", de Mia Couto

Quando chegou
a décima primeira fome
os teus ombros solares
aceitaram o arco final
e a farinha parou
na saliva da memória.
O teu rosto
rendeu-se à pedra que rasteja
e só a tua alma pequenina
se move
a beber num riacho que não vemos.
A culpa foi tua
por pedires lugar à vida
dentro deste tempo.
Ó filho da ausência,
quem te disse para vires?
Se quiseres ver o teu planeta
regressa depois
quando a tua pequena boca
não for demasiada,
quando se repartirem madrugadas
e o pão que sobrar
te fizer sequer lembrar que já morreste.

Perfil: Mia Couto (1955- ). Poeta moçambicano dos mais representativos, encontra na realidade do dia-a-dia a inspiração para retratar o sofrimento de seu povo.
É diretor do jornal "Notícias", órgão da República Popular de Moçambique.
Obras: "Raiz de Orvalho".
Fonte: “Antologia escolar”, org. de Iguamir Antonio Marçal. Biblioteca do Exército, RJ, 1995.

"O Sinal Semafórico" de Antônio Mendes Cardoso

...e nos deram apenas um minuto
Irrepetível: plena plenitude
Entre o vagido, a busca e novo fruto
De novo sal, amor, solicitude.

...e nos deram apenas um minuto
Incandescente: chama abrasadora
Que não teme calúia ou vil insulto
À revolta da vida criadora.

Saibamos construir eternidade
Em cada gesto, flor, olhar amante
Eternos caminheiros da verdade

Em busca do real e do existente
Se sob o céu despirmos a vaidade
Sobre a terra andaremos simplesmente.

Perfil: Antônio Cardoso (Luanda, 1933). Destacado poeta angolano, está representado em várias antologias de poesia da língua portuguesa, como "Poesia Negra de Expressão Portuguesa" (1953) e "No Reino de Caliban II, Angola, São Tomé e Príncipe" (1976).

"Cantiga que Deus me ensinou", de Eugênio Tavares

Encosta a cabeça
No meu peito, Amor:
Para que tanta pressa
De correr para a dor?

Oh beijo de amor,
Beijo da bem-amada!
Seja como for
Este teu inferno é céu...

Já diz a Lei de Deus:
"Santo é quem quiser."
Toda a graça está
(tudo depende)
Em esperar, com fé.

Encosta, amor,
A cabeça neste peito
Deus já me deu este jeito
(oportunidade)
De morar no céu...

Deixa-me beijar-te na testa
Para iluminar a minha sorte
Ai, se um beijo é festa,
Muitos beijos são a morte...

Oh Sol dá-me a tua asa
Para deixar este degredo!
O meu destino é feito
De tristeza e de dor.

Trigueirinha santa
Dorme no meu regaço
Meus dois braços são uma (manta)
A minha sombra é paz.

Vem ouvir este clamor
Que Deus me ensinou
Para aliviar a dor
De outros corações.

Vençamos esta distância
Embarquemos no vento:
Deixemos as nossas ânsias
E os nossos sofrimentos...

(Tradução de Arnaldo França.)
Abaixo, a transcrição do poema no dialeto cabo-verdiano:

"Cantiga que Deus ensina"
Encostã cabeça
Na nha peto, Amor:
Pá que tanto pressa
De corrê pâ dor?

Ó bejo de amor.
Bejo de crecheu!
Seja comâ for,
Es bô inferno é ceu...

Lei de Deus jâ flâ:
"Santo é quem crê".
Tudo graça stâ
Na espera co fê...

Encostã crecheu,
Cabeça na es peto:
Deus ja dam es geto
De morâ na ceu...

Xa'n bejabo testa
Pa'n clariâ nha sorte:
Ai, se um bejo é festa,
Bejo tcheu é morte...

O Sol da'n bô asa
Pa' largâ es degredo!
Nha destino é feto
De tristeza e dôr.

Trigueirinha santa,
Dormi na ragáz:
Nha dos braços é manta.
Es nha sombra é paz.

Bem obi es clamor
Que Deus ensinam
Pam ta lebia dor
De otos coraçom.

No bencê es distância,
No emborcâ na bento:
No largâ nos ânsia
Co nos sofrimento...

Perfil: Eugênio Tavares, natural de Cabo Verde, é considerado o poeta da "morna" (expressão poético-musical cabo-verdiana). No início do século XX, participou do movimento "nativista" pela autonomia de sua ilha natal. Fez parte, ao lado de Pedro Cardoso, do grupo de intelectuais que fundaram a revista "Claridade" como porta-voz da cultura autóctone.
Fonte: "Antologia escolar", org. de Iguamir Antonio T. Marçal. Biblioteca do Exército, RJ, 1995.

domingo, 10 de agosto de 2008

"Poesia Africana de Língua Portuguesa", de José F. Costa

Ensaio escrito por José Francisco Costa, pesquisador da Bristol Community College, em 05/04/2006.

Em primeiro lugar gostaria de me situar perante o título/sugestão que motivou o presente exercício escrito. A lista acima sugerida apresenta, desde logo, uma valiosa pista para demarcarmos os parâmetros da análise que me proponho. Com efeito, todos estes autores são, a meu ver, o que de mais representativo se pode encontrar na literatura africana de expressão portuguesa. E isto porque cada um dos poetas é, no seu lugar e tempo, um marco de referência obrigatória para o estudo e análise da caminhada que, sobretudo a partir da terceira década deste finado século, foi encetada pela comunidade de escritores que hoje têm os seus nomes no corpus da literatura do país a que pertencem.
Utilizei a palavra "caminhada" porque o seu sentido metafórico é mais forte do que o simples "caminho" conotado com algo de passivo, de efeito logicamente ligado a uma causa que o produz; enquanto "caminhada" conota a quebra de barreiras, a abolição de antigos códigos e a introdução de outros, a renovação de mentalidades, a assunção de risco. Enfim "caminhada" é um lexema cuja semântica se relaciona com o esforço de produzir e criar a novidade. Jorge Barbosa e Corsino Fortes, Francisco José Tenreiro, Agostinho Neto e Arlindo Barbeitos, José Craveirinha e Luís Carlos Patraquim, são os que, em determinada altura, se "desviaram" do caminho de uma literatura colonial e colonizante. Foram eles que lançaram a pedra no charco de uma criação literária que parecia estagnada pelo torpor do lusotropicalismo. Foram sobretudo autores como Jorge Barbosa, Corsino Fortes e Agostinho Neto que iniciaram a marcha para a libertação definitiva do logos que, em todos os casos, foi arma fundamental na luta pela própria independência política.
Se falamos de "caminhada", entendemos obviamente uma progressão em todos os sentidos da criação literária. É por isso que, ao referirmos estes poetas, entendemos que é possível falar em evolução aos níveis ideológico, temático e formal das literaturas de que são expoentes.
E cabe aqui referir, embora muito ao de leve, a problemática relacionada com o aparecimento das literaturas de expressão portuguesa em África. Elas são, por um lado, o resultado de um longo processo histórico de quase quinhentos anos de assimilação de parte a parte, com tudo que há de positivo e negativo em tal processo; por outro lado, estas literaturas são produto (a meu ver, ainda não acabado) de uma conciencialização que se iniciou nos anos 40 e 50 deste século com chamadas "elites lusófonas" 1. Mais do que isso acontece que o escritor africano vive, até à data da independência, no meio de duas realidades a que ele não pode ficar alheio: a sociedade colonial européia e a sociedade africana; os seus escritos são, por isso, o resultado dessa tensão existente entre os dois mundos. Acrescente-se que o escritor africano - e apesar dos esforços dos governos de Salazar e Caetano em sentido contrário - recebe constantemente as influências do exterior, pelo que a sua escrita, na forma e no conteúdo, revela o contacto com movimentos e correntes literárias da Europa e da América.
Pergunta-se se será possível periodizar tal processo de modo a que , num quadro único de esquema geral, caibam todos os escritores de todos os países. Manuel Ferreira oferece-nos um esquema em que apresenta a emergência da literatura africana, sobretudo no que toca à poesia, ligada ao que ela considera como "os momentos/etapas do produtor do texto". No primeiro momento, o escritor está em estado quase absoluto de alienação. Os seus textos poderiam ter sido produzidos em qualquer outra parte do mundo: é o menosprezo e a alienação cultural. Ao segundo momento corresponde a fase em que o escritor ganha a percepção da realidade. O seu discurso revela influência do meio, bem como os primeiros sinais de sentimento nacional: é a dor de ser negro; o negrismo e o indigenismo. O terceiro momento é aquele em que o escritor adquire a consciênciade colonizado. Liberta-se. A prática literária enraíza-se no meio sócio-cultural e geográfico: é a desalienação e o discurso da revolta. O quarto momento corresponde à fase histórica da independência nacional, quando se dá a recontituição da individualidade plena do escritor africano: é a fase da produção do texto em liberdade, da criatividade. Aparecimento de outros topoi, como o mestiço, a identificação com África. O orgulho conquistado.
Estes momentos não são rígidos nem inflexíveis. Um escritor muitas vezes "flutua" entre dois ou três momentos. No seu espaço ontológico e de criatividade poética movem-se valores do colonizador que são dados adquiridos; funcionam valores culturais de origem; e há sempre a consciência de valores que se perderam e é necessário ressuscitar. Para se entender a literatura africana, é necessário ter em conta tal perspectiva dinâmica, como bem o afirma Manuel Ferreira: "No trânsito da dor de ser negro, em Costa Alegre, para o consciente orgulho de ser preto, em José Craveirinha, se edifica, no espaço lírico, o discurso da descolonização mental e se organoza o corpus da libertação racial e cultural" 2. Uma perspectiva mais historicista é a de Patrick Chabal, que, quando se refere ao relacionamento do escritor africano com o enorme campo de influência que constitui a oralidade (que está antes de tudo e em quase tudo o que de melhor se tem escrito em África), propõe quatro fases abrangentes da literatura africana. A primeira fase é a da assimilação. Os escritores africanos, quando lhes foi dada a oportunidade de produzir esteticamente, copiam e imitam os mestres, sobretudo europeus,pelo que, como diz Chabal, " Na história de cada colônia existe um número de escritores que escreveu como os europeus" 3. A segunda fase é a da resistência. Nesta fase o escritor africano assume a responsabilidade de construtor, arauto e defensor da cultura africana. È a fase do rompimento com os moldes europeus e conciencialização definitiva de que o "homo" africano é tão "sapiens" como o europeu. Esta fase coincide com a da negritude lusófona, que, como sabemos, tomou caminhos algo diferentes da negritude de Cesaire, Damas e Senghor. A terceira fase da literatura africana coincide com o tempo da afirmação do escritor africano como tal. Esta fase verifica-se depois da independência. O escritor procura, antes de mais, marcar o seu lugar na sociedade. Mais do que praticar "o exorcismo do imperialismo cultural", o escritor africano preocupa-se com "definir a sua posição nas sociedades pós-coloniais em que vive" 4. A quarta fase que é a da actualidade, é a fase da consolidação do trabalho que se fez, em termos literários; é a fase em que os escritores procuram traçar os novos rumos para o futuro da literatura adentro das coordenadas de cada país, ao mesmo tempo que se esforçam por garantir, para essas literaturas nacionais, o lugar que lhes compete no corpus literário universal.
Se quisermos ter uma visão de conjunto da literatura africana, torna-se necessário ter em linha de conta estas fases da produção do texto, mas também os grandes momentos de ruptura com os códigos estabelecidos. A crítica e os historiadores estão basicamente de acordo que tais momentos poderão ser compendiados tendo como limites a seguinte periodização, que, por exemplo, nos oferece Manuel Ferreira. Diz este autor que "[...], os fundamentos irrecusáveis de uma literatura africana de expressão portuguesa vão definir-se com precisão, deste modo:
a) em Cabo Verde a partir da revista Claridade (1936-1960);
b) em S. Tomé e Príncipe com o livro de poemas Ilha de Nome Santo (1943), Francisco José Tenreiro;
c) em Angola com a revista Mensagem (1951-1952);
d) em Moçambique com a revista Msaho (1952); d (sic) - na Guiné-Bissau com a antologia Mantenhas para quem luta! 1977 5. Postas essa consideração de caráter genérico, gostaria de acrescentar algo que me parece de extrema importância para a leitura avisada das obras de literatura africana de expressão portuguesa. Penso que, ao estudar e ler obras dos escritores africanos, devemos ter presentes coordenadas que respeitam uma compreensão de tipo diacrónico desta literatura.Devemos ter em conta ,em primeiro lugar,as dificuldades do sujeito poético em se encontrar com seu universo africano. Devemos ter presente que muita da produção literária é o reflexo do esforço de procura de identidade cultural e a tomada progressiva de uma consciência nacional. Muita desta literatura é sintomática de uma verificação dolorosa de que a terra e os homens são dominados por estranhos.
Também é necessário entender que, em quase todos os autores (para não dizer, em todos eles), é sempre possível detectar-se o momento poético da agressividade, que, no entanto, é continuamente acompanhado pela corrente subterrânea da esperança na mudança - que acabou por verificar-se. E depois desse mudança, é evidente que mestres como Barbosa, Lopes, Craveirinha, Tenreiro e Neto vão dando lugar a um Patraquim, Mia Couto, Barbeitos, e mais gente, com a nova visão de uma África que se renova. Aí vai, em traços muito largos, o que cada um dos autores propostos representa na literatura do seu próprio país.

CABO VERDE
Todos sabemos que há um conjunto de factores de ordem geo-política, econômica e social que levou a que Cabo Verde, desde muito cedo, ficasse praticamente entregue a si próprio em termos de homogenização racial e cultural. O impacto do colonialismo não é tão drástico, impulsivo e dramático como nas outras regiões. Embora reconhecendo o risco de tal afirmação, diria que Portugal, como potência colonizadora, e com todas as expectativas do regime, acabou por criar algumas condições necessárias para o aparecimento da literatura caboverdiana. Desde muito cedo que a terra, bem como os centros de controle e administração, passam para as mãos de. O grupo uma burguesia nascida em Cabo Verde, formada maioritariamente por mestiços.
Entre 1920 e 1930 já existe uma elite muito consciente dos problemas que afectam as ilhas. Esta gente está sobretudo concentrada em S. Nicolau, S. Antão e S. Vicente, e muitos são comerciantes, professores estudantes e jornalistas que estão em contacto com as correntes e movimentos literários de Portugal, como o modernismo e o neorealismo. Mas é sobretudo o modernismo brasileiro que influencia esta geração que se familiariza com Jorge Amado, Graciliano Ramos, José Lins do Rego, e poetas como Jorge de Lima, Ribeiro Couto, Manuel Bandeira, e os sociólogos como Gilberto Freyre. A partir, sobretudo, dessa altura os escritores de Cabo Verde começam a tomar uma consciência cada vez mais nítida da realidade das ilhas, a romper com os modelos de tipo europeu. A atenção é focada cada vez mais na terra, no ambiente sócio-económico e no povo das ilhas.
O grande passo para a viragem total de temática da literatura produzida em Cabo Verde é dado, em 1936, por um grupo de intelectuais que lança a revista Claridade. O grupo, que para a história literária passou a ser conhecido por claridosos, integra, para além de outros, Baltazar Lopes, Manuel Lopes e Jorge Barbosa.
As linhas mestras dos movimentos dos claridosos estão praticamente condensadas na obra daquele que também é o seu maior responsável - Jorge Barbosa. A preocupação fundamental da sua poesia é revelar as situações com que diariamente se defronta o cabo-verdiano: a fome, a miséria, a falta de esperança no dia de amanhã, as secas e os seus efeitos devastadores. Os grandes tópicos são o lugar, o ambiente sócio-económico e o povo; e todos em relação constante com o mar. O mar é o elemento provocador do aparecimento de outras duas realidades soberbamente tratadas na poética barbosiana: a viagem e o sonho de encontrar uma terra prometida.
A ilha, o mar, a viagem e o sonho são os signos de maior densidade na poesia de Jorge Barbosa. Toda essa temática se distribui pelas suas três obras: Arquipélago (1935), Ambiente (1941) e Caderno de um Ilhéu (1956). Mas, quanto a mim, é em Ambiente que Jorge Barbosa se define como poeta inovador, que dá à sua poesia uma tonalidade dramática nova, trazida "pela intimidade, a denúncia, a epopéia do homem isleno vivendo no drama de <>" 6. Não resisto à tentação de citar aqui um poema que, quanto a mim, é revelador da dualidade em que Jorge Barbosa coloca os referentes de quase todos os seus poemas. Há sempre um "eu" em constante tensão com um ambiente exterior. Repare-se no poema Prisão:
Pobre do que ficou na cadeia
de olhar resignado,
a ver das grades
quem passa na rua!
pobre de mim que fiquei detido
também na Ilha tão desolada
rodeada de Mar!...
...as grades também da minha prisão! 7

Este poema é paradigmático quando se procura organizar uma amostragem comparativa da poesia de Cabo Verde. É que toda poesia dos claridosos, se por um lado rompeu com os diques das normas temáticas do colonialismo, não se terá libertado completamente de um certo miserabilismo herdado do neo-realismo português. Esta poesia é toda ela virada para o homem caboverdiano e o mundo que o rodeia; no entanto não aponta grandes soluções. É pois, uma poesia de descrição, profundamente lírica, intimista, mais ainda falha de coragem para apontar outra solução ao homem caboverdiano que não seja a evasão do mundo que lhe pertence. É por isso que os claridosos, e Jorge Barbosa, evidentemente, são freqüentemente criticados pelo carácter "evasionista" e "escapista" da sua poesia.
A geração da Claridade lançou os alicerces da nova poesia que depois é continuada pelos escritores que colaboram em outras duas publicações, a Certeza (1944) e o Suplemento Cultural (1958). Nas duas revistas colaboraram poetas como António Nunes, Aguinaldo Fonseca, Gabriel Mariano, Onésimo Silveira (um dos primeiros a utilizar o crioulo de parceria com o português, no seu livro Hora Grande, 1962) e Ovídio Martins, que combate abertamente o evasionismo dos claridosos. Apesar de tudo a geração da Claridade influenciou, e continua a influenciar, grande parte da produção poética e ficcionista de Cabo Verde.
O salto qualitativo e a ruptura com a influência dos claridosos devem-se a dois escritores que chegaram a participar na revista Claridade. Estou a referir-me a João Varela (aliás João Vário, aliás Timótio Tio Tiofe) que publicou em 1975, o primeiro livro de Notcha, e Corsino Fortes, autor de dois importantes trabalhos poéticos, Pão & Fonema (1975) e Árvore & Tambor (1985). É sobretudo Corsino Fortes que provoca o maior desvio de conteúdo temático e formal. O livro Pão & Fonema deixa perceber a intenção do autor em reescrever a história do povo em termos de epopéia. O livro abre com uma Proposição que constitui, por si só, uma demarcação da poesia de tipo estático dos claridosos. Repare-se na primeira estrofe:
Ano a ano crânio a crânio
Rostos contornam o olho da ilha
com poços de pedra
abertos no olho da cabra 8
Esta cadência ritmada do esforço humano marca o compasso da epopéia que se pretende escrever, intenção que o autor condensa na epígrafe da autoria de Pablo Neruda:
"Aqui nadie se queda inmóvel.
Mi pueblo es movimiento.
mi pátria es um camino" 9. O poema desenrola-se depois em dois cantos que justificam o título.
Este livro de Corsino Fortes é, quanto a mim, o desenvolvimento e expansão de uma metáfora que se inicia com o título. O povo tomou conta da sua terra (o Pão) e do seu destino (a fala que dá nome às coisas, que indica posse). A utilização do crioulo em muitos poemas é intencional, uma vez que fala, anterior à escrita, é o grande sinal da liberdade que se tornou patrimônio, tal como a terra. Daqui o subtítulo do canto primeiro - Tchon de Pove Tchon de Pedra; daqui também os subtítulos de outros dois cantos - Mar & Matrimónio e Pão & Matrimónio.
É evidente que toda problemática de raiz caboverdiana está presente na obra de Corsino Fortes. Ao contrário dos claridosos, a nova poesia é uma expressão artística cuja formulação sugere, reflecte e intervém na dinâmica do real. A grande diferença no entanto, reside no facto de que este autor, para além de criar uma nova dinâmica de ralações entre o sujeito e o objecto poético, colocar toda a problemática caboverdiana num contexto muito mais vasto que é o da África. Cabo Verde, com sua especificidade, que é o isolamento de arquipélago, participa na viagem de construção da África de rosto e corpo renovado:
Dos seios da ilha
ao corpo da África
O mar é ventre
E umbigo maduro
E o arquipélago cresce 10

SÃO TOMÉ E PRÍNCIPE
Em termos quantitativos, a produção poética de São Tomé e Príncipe corresponde às suas dimensões físicas, se compararmos com o que se passa nos outros países. A literatura deste pequeno país de duas ilhas no noroeste da costa africana é ainda pouco representativa no contexto das literaturas africanas de expressão portuguesa. No entanto, e qualquer que seja o futuro da sua produção poética, São Tomé e Príncipe tem assegurada a presença na panorâmica histórica da literatura africana. Com efeito, Francisco José Tenreiro, nascido em São Tomé, em 1921, é um dos marcos da poesia africana de expressão portuguesa.
Sobre outros poetas, valerá a pena mencionar um dos precursores da negritude lusófona, Francisco da Costa Alegre, nascido em 1864. A sua única obra, Versos, foi editada postumamente, em 1916. Costa Alegre é um dos primeiros poetas africanos que se exprime em língua portuguesa e que tem a consciência da sua cor 11. Ele não articula uma resposta à injustiça social que deixa transparecer em alguns dos seus versos, pelo que a sua poesia se parece mais com um queixume sobre a sua situação de africano de cor:
"A minha cor é negra,
Indica luto e pena;
(...)
Todo eu sou um defeito,
Sucumbo sem esperanças."

Estes e outros lamentos são a tónica de sua poesia, que, no entanto, significa um despertar para a cor, um dos passos importantes para uma tomada de consciência nacional que a poesia africana toma em determinada altura, mas que se segue ao que Manuel Ferreira e outros críticos identificam como a "alienação racial".
Devemos referir também a poetisa Alda do Espírito Santo que figura em todas as antologias de poesia africana. A sua poesia, que tem também a diferença racial e a exploração colonial como pano de fundo, caracteriza-se por uma grande dose de combatividade e panfletarismo. No entanto, no seu único livro publicado até à data, É Nosso o Solo Sagrado da Terra: Poesia de protesto e luta, encontramos também os poemas de grande profundidade lírica, que descrevem com traços de verdadeira sensibilidade artística, a vida dos habitantes de São Tomé. Outros poetas, como Tomaz Medeiros, Maria Manuela Margarido, Marcelo da Veiga e Carlos do Espírito Santo, mantêm uma linha de continuidade em que a temática de fundo é a luta contra o colonialismo, a exploração dos negros nas plantações, a consciência da diferença que a cor provoca, e a alienação.
Como já me referi, o expoente da poesia sãotomense, e da poesia africana, é Francisco José Tenreiro. Duas razões fundamentais para esta facto. A primeira é uma razão que se reveste de carácter histórico de muita importância. Francisco José Tenreiro foi, de parceria com outro importante nome da literatura de Angola (Mário Pinto de Andrade), o autor do célebre Caderno de Poesia Negra de Expressão Portuguesa, lançado em Lisboa, em 1953. A publicação, com uma introdução de Mário Pinto de Andrade, é uma pequena antologia de poetas de Angola, Moçambique e São Tomé e Príncipe e ainda um poema de Nicolás Guillén, a quem o caderno é dedicado. Tem como objectivo fundamental uma reflexão sobre o que devia entender por negritude na África sob dominação portuguesa. O último período da introdução é bem explícito com relação ao propósito da publicação do caderno, que se destina "fundamentalmente aos que sabem encontrar-se reflectidos nesta poesia, e aos que, compreendendo a hora presente de formação de um novo humanismo à escala universal, entendem que os negros exercitam também os seus timbres particulares para cantar a grande sinfonia humana." 12
A segunda razão por que Francisco José Tenreiro é um marco de máxima importância na literatura africana vem resumida na introdução atrás citada. As palavras do poeta angolano sintetizam, a meu ver, o conteúdo temático e formal da poesia de Tenreiro. É por tal motivo que me permito terminar a referência ao grande da negritude em português com as palavras de Mário Pinto de Andrade: "Quem pela primeira vez exprimiu a <> em língua portuguesa foi sem sombra de dúvida Francisco José Tenreiro no seu livro Ilha de Nome Santo, datado de 1942. Devemos assinalar que ele encontrou por si, individualmente, as formas mais autênticas de expressão subjectiva e objectiva da <>. A Ilha de Nome Santo aparece assim como um feliz encontro dos temas da sua terra de origem (S. Tomé) e ainda como exaltação do homem negro de todo o mundo". 13
A obra poética de Tenreiro, particularmente Ilha de Nome Santo, foi desde sempre uma leitura obrigatória de todos quantos participaram dos movimentos sociais, políticos e literários, sobretudo a partir da década de 50. Tais movimentos foram-se a partir de organizações como a Casa dos Estudantes do Império e o Centro de Estudos Africanos, em Lisboa, de que Tenreiro foi um dos fundadores, em 1951. Em tais organizações militou a maioria dos intelectuais cujas obras passaram a integrar o que de mais representativo existe na poesia e na ficção dos países africanos de expressão portuguesa. E é sobretudo a poesia desses autores que absorve, com maior grau de profundidade, a tonalidade de negritude existente na obra de Francisco José Tenreiro. Eu diria que Tenreiro serviu de charneira na moldagem da literatura africana; literatura esta que não constitui uma ruptura essencial com a cultura dominante de cinco séculos, mas segue, para utilizar a idéia de Frantz Fanon, num movimento dirigido que começa na assimilação e vai até à luta pela libertação. 14

ANGOLA
Como acontece com os outros países, a literatura de Angola também não nasce por método espontâneo. Vários são os antecedentes e os precursores que influenciam sobremaneira o carácter social, cultural e estético da literatura e da poesia, em particular. E não podemos nunca descurar, como factor de grande influência, a tradição da oralidade em África, quanto a mim, um dos antecedentes de maior responsabilidade. O peso da oralidade exerce-se em muita da obra poética africana, conferindo-lhe uma grande carga de "espiritualismo telúrico". 15 Podemos considerar a história da poesia de Angola em duas fases, sendo a primeira a da escrita colonial, e a segunda a da poesia moderna e nacional, que se inicia com a publicação da revista Mensagem, em 1951.
Mensagem marca, assim, o início da poesia moderna de Angola. Nesta revista participa uma pleiade de escritores que serão os responsáveis pela construção da literatura do novo país, nascido em 1975. No primeiro número de Mensagem colaboram, entre outros, Mário António, Agostinho Neto, Viriato da Cruz, Alda Lara, António Jacinto e Mário Pinto de Andrade. A publicação da revista, no dizer de Ana Mafalda Leite, "foi o resultado concreto da ambição desta nova geração de intelectuais de Angola de amplificar o movimento cultural iniciado nos anos 40 por Viriato da Cruz." 16
A produção poética angolana abrange três grandes períodos: de 1950 a 1970; o período de inovações - a década de 70; e a geração de 80. Vejamos, em resumo, em resumo, o que se passa em tais espaços de tempo.
As duas décadas de 1950 a 1970, marcam a fase da viragem para a conciencialização da problemática angolana, sobretudo em três grandes vertentes - a terra, a gente, e as suas origens. A temática dos escriotres da Mensagem gira à volta de tópicos que vão caracterizar a poética que existe até aos nossos dias: a valorização do homem negro africano e da sua cultura a sua capacidade de auto-determinação, a nação africana que se antevê como estado com autoridade e existência próprias. Muita da poesia é uma poesia de protesto anti-colonial, sem deixar de ser humanista e social. Agostinho Neto, Viriato Cruz e Mário António concentram muito da sua produção nesta temática.
O protesto anti-colonial toma uma feição muito mais directa e acutilante com a publicação da revista Certeza, em 1957. Esta revista, que se publica até 1961, revelou a existência de novos poetas, entre eles António Cardoso e Costa Andrade. Para além da contestação contra o colonialismo, desenvolve-se progressivamente uma temática que tem a ver com a evocação e a invocação da "mãe-pátria", da "terra grande" de África. Quase todos estes poetas tratam os temas da identidade, da fraternidade, da terra de Angola pátria de todos, negros, brancos e mestiços; de grande importância é também o tópico da alienação (sobretudo a que respeita ao estado de espírito do branco nascido e criado em Angola). Muita da poesia é também de carácter intimista, como é o caso da de Mário António.
Toda esta geração, utilizando recursos líricos e dramáticos, consegue criar uma poesia de fundo e cariz emocional. Através da poesia, descobre-se Angola, as suas origens, as suas tradições e mitos. A poesia adquire uma intencionalidade pedagógica e didáctica: com ela tenta-se recriar África e Angola, os valores ancestrais do homem africano e da sua terra, bem como ensinar esse mesmo homem a descobrir-se como individualidade. Esta poesia põe em prática a reposição da tradição oral, onde as próprias línguas nacionais ocupam um espaço importante. É, numa palavra, a poesia da "ango-lanidade".
O autor que representa melhor toda esta problemática é, sem dúvida, Agostinho Neto. A sua obra principal, Sagrada Esperança, é uma amostra valiosa não só da poesia de combate e contestação (sem ser panfletária, no entanto) mas também da poesia lírica e intimista, frequentemente modulada por uma religiosidade profunda. Agostinho Neto revela um grande humanismo, em que são evidentes o amor profundo pela vida e o conhecimento do sofrer humano, que amiúde obriga o poeta a utilização de um realismo feroz nos seus versos. Leia-se, como exemplos poemas "Velho Negro" 17 e "Civilização Ocidental" 18. Se dizemos que há poemas intimistas, tal não significa que o poeta se isole de habitat social e perde a referência fundamental da sua poesia. É constante a relação estabelecida por Neto entre o "eu" poético e o "outro"; um "eu" que é povoado pela humanidade e colocado no contexto da vida do seu povo. Veja-se, por exemplo, o poema "Confiança" 19 e o poema intitulado "Não me peças sorrisos" 20, que, a meu ver, é um dos melhores poemas de Agostinho Neto. Como o próprio título sugere, é evidente que a esperança é o tópico raiz e motor desta poesia. A esperança é o núcleo à volta do qual se constroem unidades poéticas de ralação dialéctica, como sejam a dor e o optismo, o sonho do poeta e o despertar do povo, a escravidão e a fé de transcender a opressão. Não podemos falar de sentimentalismo nesta poesia, mas sim de realismo poético. Eu chamaria atenção para o bom exemplo que é o poema "O choro de África" 21. Neste poema o poeta fala do "sintoma de África", que é uma combinatória dialéctica do sofrimento e da alegria que temperam, durante séculos, o homem africano, cujo destino é "criar amor com os olhos secos" 22. Como resultado desta temática, o estilo de Agostinho Neto revela grande contenção de forma, onde não há lugar para floreados poéticos e apelos fáceis à emoção, pese embora o seu cunho profundamente religioso.
Na década de 70 surgem três nomes que vão ser os principais responsáveis por uma mudança profunda na estética e na temática: David Mestre, Ruy Duarte de Carvalho e Arlindo Barbeitos. Por um lado, procura-se maior rigor literário; por outro, e como consequência do anterior, evita-se propositadamente o panfletarismo. Entra-se também numa fase de maior experimentalismo. Estes autores tentam também reconciliar os temas políticos do passado com a procura de uma linguagem poética mais universal. Por exemplo, Ruy Duarte de Carvalho é autor de uma poesia que, ao lado de uma grande ambiência de oralidade e de um apontar para as consequências da guerra constitui também uma reflexão sobre o próprio discurso poético. É, no entanto, Arlindo Barbeitos a voz poética que melhor assume a viragem e a ruptura com a tradição da Mensagem.
Arlindo Barbeitos tem, até o momento, dois livros publicados: Angola Angolê Angolema (1976) e Nzoji (1979). Numa nota de introdução a Angola Angolê Angolema, Barbeitos traça as linhas mestras de sua poética. Assim, a sua poesia tenta ser uma reconciliação do homem com a sua condição; é um testemunho e um instrumento de libertação. A poesia tem como função primordial sugerir; ela é um compromisso entre a palavra e o silêncio. A outra função é a de relatar as formas culturais africanas e a vivência do au-tor. Arlindo Barbeitos afirma, a propósito, que "só é poesia se sugere, só tem expressão, só tem força, só é arte em forma de palavra, se simultaneamente retém e transcende a palavra" 23. Sobre as características da sua poesia, devemos dizer que ela é religiosa na medida em que nela se relata a experiência do ser humano que procura sempre a perfeição; por outro lado, há sempre o desejo de retorno à imanência, e a vontade de construir a irmandade universal. É, também, uma poesia que reflecte a dor, a guerra , a situação colonial. Em relação à língua, Arlindo Barbeitos tenta, e consegue, africanizar a língua colonial, numa tentativa continuada de repossuir todos os valores e tradições culturais do país.
A partir dos anos 80, surge uma nova geração de escritores cujo ecletismo é a característica mais marcante. Digna de nota é uma pequena antologia publicada em 1988, e intitulada no Caminho Doloroso das Coisas. Na introdução, o organizador da antologia deixa perceber o rumo de uma certa descontinuidade que a nova poesia angolana vai tomando: "São jovens, mas dentre eles há poetas que são artistas nos seus versos como carpinteiros nas tábuas. Tiveram que por (sic) verso sobre verso como quem constrói um muro. Analisaram se estava bem e tiraram sempre que não estivesse, sentados na esteira do Pessoa, [...] Jovens subscritores de uma auto-explicação metalinguística em que a ruptura formal não é tudo." 24

MOÇAMBIQUE
O processo de formação da literatura de Moçambique segue, mutatis mutandis, os mesmos trâmites que o de Angola. A formação, sobretudo nas zonas urbanas da Beira e Lourenço Marques (agora, Maputo), de uma elite de alguns negros, mestiços e brancos que se apoderou, aos poucos, dos canais e centros de administração e poder, é factor preponderante na emergência de uma literatura que passa pelas mesmas fases até aqui referidas para Angola: pré-colonial e colonial, afro-cêntrica e luso-tropicalista, nacional e pós-colonial.
Em termos de precursores desta literatura, há que referir Rui de Noronha, João Dias e Augusto Conrado. Entre eles merece realce Rui de Noronha, cujo livro de Sonetos foi publicado seis anos após a sua morte. A sua poesia reveste-se de algum pioneirismo, não pela forma, mas pelo conteúdo, uma vez que alguns dos sonetos mostram sensibilidade para a situação dos mestiços e negros, o que constitui a primeira chamada de atenção para os problemas resultantes do domínio colonial. Rui de Noronha representa também uma das primeiras tentativas de sistematizar, em termos poéticos, o legado da tradição oral africana. Sirva, como exemplo, o poema carregado de imagens do mundo mítico africano, intitulado "Quenguelequêze! ..." 25 Uma parte significativa da produção literária moçambicana deve-se aos poetas da "literatura européia" 26 ou seja, aqueles que, sendo brancos, centram toda, ou quase toda a sua temática nos problemas de Moçambique; foram eles que contribuíram decisivamente para a formação da identidade nacional moçambicana. Merecem especial realce: Alberto de Lacerda, Reinaldo Ferreira, Rui Knopfli, Glória Sant'Anna, Sebastião Alba, Luis Carlos Patraquim e António Quadros. Alguns destes poetas escrevem poesia de carácter mais pessoal, enquanto os outros estão virados para o aspecto "social". Por exemplo, Reinaldo Ferreira e Rui Knopfli são poetas cuja obra se debruça fundamentalmente sobre a África, a "Mãe África" e o povo que vive e sofre as consequências do colonialismo. Por muita desta poesia perpassa também a centelha da esperança da libertação. São estes autores que contribuíram de um modo decisivo para a emergência da literatura da "moçambicanidade". Em muitos destes poetas podemos detectar a alienação em que se encontram perante a sociedade africana a que pertencem. Veja-se este exemplo de Rui Knopfli:
Europeu me dizem.
Eivam-me de literatura e doutrina européias
e europeu me chamam.
Não sei se o que escrevo
tem raiz de algum pensamento europeu,
É provável... Não.
É certo, mas africano sou. 27

A poesia política e de combate em Moçambique foi cultivada sobretudo por escritores que militavam na Frelimo. Entre eles, destaque para Marcelino dos Santos, Rui Nogar e Orlando Mendes. Este tipo de poesia preocupa-se sobretudo com comunicar uma mensagem de cunho político e, algumas vezes, partidário. Como literatura, e salvo raras excepções (como é o caso de Rui Nogar, com alguns belos poemas de carácter intimista, no seu livro Silêncio escancarado, de 1982), esta poesia é pouco ou nada inovadora.
Como nos outros países, surge também em Moçambique um número de escritores cuja obra poética é conscientemente produzida tendo em conta a factor da nacionalidade, anterior, como é evidente, à realidade do país que mais tarde se concretiza. São eles que forjam a consciência do que é ser moçambicano no contexto, primeiro da África e, depois, do mundo. Entre os principais autores deste tipo de poesia, encontram-se Noémia de Sousa, José Craveirinha, Jorge Viegas, Sebastião Alba, Mia Couto e Luis Carlos Patraquim.
A figura de maior destaque na poesia da moçambicanidade, e referência obrigatória em toda a literatura africana, é José Craveirinha. De facto, a poesia de Craveirinha engloba todas as fases ou etapas da poesia moçambicana, desde os anos 40 até praticamente aos nossos dias. Em Craveirinha vamos encontrar uma poesia tipo realista, uma poesia da negritude, cultural, social, política; há uma poesia de prisão; existe uma poesia carregada de marcas da tradição oral, bem como muito poema com grande pendor lírico e intimista.
Porque nos propomos analisar, numa outra oportunidade, a poética de Craveirinha, fique, ao menos, a referência à obra publicada deste autor: Cela 1 (1980), Xigubo(1980), Karingana Ua Karingana (1982) e Maria (1988). Uma leitura atenta leva-nos a perceber a diferença marcante entre cada uma destas obras de Craveirinha. Xigubo é um livro mais virado para a narratividade, para a descrição de elementos exteriores ao poeta. Neste livro, o poeta distancia-se do "eu" poético; ou, então, funciona como um narrador de estórias cuja voz é éco de um drama que se desenrola num universo (o de África) em que o poeta é participante. Pelo contrário, em Cela 1 e Maria, o "eu" poético identifica-se com o sujeito da narrativa. As últimas duas obras são um corolário da itinerância do poeta num clima de epopéia de que Xigubo e Karingana Ua Karingana são um registro. O poeta transfere-se da esfera de uma experiência colectivizante "narrada" em Xigubo, para uma escrita que individualiza a sua própria vivência "mimada" em Cela 1 e Maria.
Nesta obra de José Craveirinha, que não se pode considerar vasta, encontra-se o que de melhor pertence à poética africana dos países de expressão portuguesa.
Termino com uma breve referência à poesia do período pós-independência. Os poetas desta geração (é evidente que não me refiro aos "grandes" de antes de 1975, como Reinaldo Ferreira, Knopfli e Sebastião Alba desviaram-se da poesia de cariz colectivo, preferindo o individual e o intimista com que relatam a sua experiência pós-colonial. Entre estes poetas, é obrigatória a referência a Mia Couto, mas sobretudo a Luis Carlos Patraquim. São dois grandes construtores da palavra, preocupados com a linguagem poética. No caso de Mia Couto, penso que ele acaba por transferir todo o seu potencial poético para a ficção. Luis Carlos Patraquim revela influências de Craveirinha e Knopfli, sobretudo nos seus poemas de maior pendor pessoal e lírico, a sua poesia revela-se de certo modo, caótica, sensual e, por vezes, surrealista.
Patraquim desenvolve uma poesia que, em parte, é inovadora, focalizada sobretudo no amor e no erotismo. Nota-se também uma grande preocupação de ligar a sua experiência ao mundo universal dos poetas para além das fronteiras africanas. Autor de três livros (Monção, A inadiável viagem e Vinte e tal Formulações e Uma Elegia Carnívora), Luis Carlos Patraquim representa a fusão entre as duas grandes vertentes da poesia moçambicana: a da moçambicanidade e a da linguagem lírica e sensual do "estar em Moçambique". 28


___________
1 - José Carlos Venâncio, Literatura e Poder na África Lusófona (Lisboa: ICALP,1992), pág.17
2 - Manuel Ferreira, O Discurso no Precurso Africano - I (Lisboa: Plátano, 1989) pág. 78
3 - Patrick Chabal, Vozes Moçambicanas - Literatura e Nacionalidade (Lisboa: Veja, 1994), pág. 24
4 - Idem , Ibid.
5 - Manuel Ferreira, Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa - I (Lisboa: ICP, 1977) pág. 34
6 - Idem, pág. 38
7- Jorge Barbosa, Poesias - I ( Praia: 1989), pág. 113
8 - Corsino Fortes, Pão & Fonema (Lisboa: Sá da Costa, 19), Pág. 3
9 - Idem, pág. 1
10 - Corsino Fortes, "Raiz e Rosto", in Árvore & Tambor (Lisboa: Dom Quixote, 1986), pág. 36
11 - Alfredo Margarido, in Poetas de São Tomé e Príncipe (Lisboa: CEI).
12 - Mário Pinto de Andrade e Francisco José Tenreiro, Poesia de expressão Portuguesa (Linda-a-Velha: África,1982) pág. 52
13 - Idem, pág. 50
14 - Janheinz Jahn, Neo-African Literature - A History of Black Writing, (New York: Grove Press,1968, cf. Chapter 16 (pp. 227-283).
15 - Russell G. Hamilton, Literatura Africana, Literatura Necessária - I, Angola (Lisboa: Edições 70, 1981), pág. 95.
16 - Ana Mafalda Leite, Angola, in Patrick Chabal with others, The Postcolonial Literature of Lusophone Africa (Evanston, Illinois: 1996), pág. 143. Tradução minha.
17 - Agostinho Neto, Sagrada Esperança (Lisboa: Sá da Costa, 1979), pág. 52
18 - Idem, pág. 57.
19 - Idem, pág. 67.
20 - Idem, pág. 70.
21- Idem, pág. 119. 22 – Idem, "criar", pág. 125.
23 - I. de Sá de Costa, "Conversando com Arlindo Barbeitos", in Arlindo Barbeitos, Angola Angolê Angolema (Lisboa: Sá da Costa, 1977), pág. 4
24 - J. A. S. Lopito Feijoó, No Caminho Doloroso das Coisas – Antologia ( Luanda: UEA,1988).
25 - A expressão é de Patrick Chabal, em The Postcolonial Literature of Lusophone Africa.
26 - Manuel Ferreira, 50 Poetas Africanos (Lisboa: Plátano editora, 1989), págs. 310-314.
27 - Idem, pág. 378.
28 - Patrick Chabal, The Postcolonial Literature of Lusophone Africa, pág. 65.

Fonte: www.cronopios.com.br
Acessado em 10/08/2007

"A África na Literatura Brasileira", de Alberto Costa e Silva

Quando vemos homens, como Bleek, refugiarem-se dezenas e dezenas de anos nos centros da África somente para estudar uma língua e coligir uns mitos, nós que temos o material em casa, que temos a África em nossas cozinhas, como a América em nossas selvas, e a Europa em nossos salões, nada havemos produzido neste sentido! É uma desgraça.
Ele poderia ajuntar que, se Castro Alves tivesse indagado aos escravos que conheceu como era a África de onde haviam sido arrancados ou o que dela contaram os seus pais, certamente não a teria descrito sem qualquer amparo na realidade, a repetir as imagens de uma África tirado da orientalismo romântico francês, a estender para o sul do Saara as paisagens que eram deste. Exemplifico. Primeiro, com estes versos de «A canção do africano»:
Minha terra é lá bem longe,
Das bandas de onde o sol vem;
Esta terra é mais bonita,
Mas à outra eu quero bem
O sol faz lá tudo em fogo,
Faz em brasa toda a areia;
... Aquelas terras tão grandes,
Tão compridas como o mar,
Com suas poucas palmeiras
Dão vontade de pensar...

Depois, com a resposta que dá, em «O navio negreiro», à pergunta «Quem são estes desgraçados»
– São os filhos do deserto
Onde a terra esposa a luz.
Onde voa em campo aberto
A tribo dos homens nus...

– antes de nos dizer que viviam
Lá nas areias infindas,
Das palmeiras do país...

– e acrescentar:
Ontem a Serra Leoa,
A guerra, a caça ao leão,
O sono dormido à toa
Sob as tendas da amplidão...

Em «Vozes d'África», eis a sua África:
Qual Prometeu tu me amarraste um dia
Do deserto na rubra penedia – Infinito: galé!...
Por abutre me deste o sol candente,
E a terra de Suez foi a corrente
Que me ligaste ao pé...

O cavalo estafado do Beduíno
Sob a vergasta tomba ressupino
E morre no areal.
Minha garupa sangra, a dor poreja,
Quando o chicote do simum dardeja
O teu braço eternal.

Vejam bem: ele convoca o simum, que sopra do Saara para o Norte da África, e não, o harmatã, que bafeja do deserto para o sudoeste do continente. A sua África não é a do africano escravizado no Brasil, que ele deseja redimir, mas a África do imperialismo romântico e mediterrânico francês. Por isso, ao comparar-se com a Ásia e a Europa, ela assim fala:
Mas eu, Senhor!... Eu triste abandonada
Em meio das areias esgarrada,
(...)
Se choro... bebe o pranto a areia ardente
(...)
E nem tenho uma sombra de floresta...
Para cobrir-me nem um templo resta
No solo abrasador...
Quando subo às Pirâmides do Egito
Embalde aos quatro céus chorando grito:
«Abriga-me, Senhor!»
(...)

Velo a cabeça no areal que volve
O siroco feroz...
Quando eu passo no Saara amortalhada...
Ai! dizem: «Lá vai África embuçada
No seu branco albornoz...»
Nem vêem que o deserto é meu sudário,
Que o silêncio campeia solitário
Por sobre o peito meu.

Lá no solo onde o cardo apenas medra
Boceja a Esfinge colossal de pedra
Fitando o morno céu.
(...)
As cegonhas espiam debruçadas
O horizonte sem fim...
Onde branqueja a caravana errante,
E o camelo monótono, arquejante
Que desce de Efraim...

E mais adiante:
As tribos erram do areal nas vagas,
E o nômada faminto corta as plagas
No rápido corcel.

Aí está uma África que se desconhece a si própria, a lamentar não ter uma sombra de floresta, quando possui a bacia do Congo, e o Gabão, e as regiões costeiras da Guiné e do golfo do Benim regiões de onde vieram tantos africanos para o Brasil. O poeta dos escravos não se preocupou em ouvir o escravo, como queria Sílvio Romero. Se o tivesse feito, não teria
escrito o que vem em «Sangue de africano»:
No peito arcado o coração sacode
O sangue, que da raça não desmente,
Sangue queimado pela sol da Líbia,
Que ora referve no Equador ardente.

Eu já tomei alguns desses versos como a indicarem que Castro Alves sabia que boa parte dos escravos que chegavam à Bahia vinha do Sael, das bordas do deserto, das grandes savanas semi-áridas do Sudão Ocidental e Central e do planalto interior de Angola. Mas, se os relemos bem, vemos que sua África pouco ou nada tem daquela onde fomos comprar a metade de nossos antepassados. Não é sequer a África semi-árida de Kano, Katsina, Bornu. É a África do Norte, a África do orientalismo romântico, a África de Delacroix.
Já Coelho Neto documentou-se bem, antes de escrever "Rei negro". O escravo que comerciava em nome do dono e lhe dirigia as tropas de mulas até a Corte não é invento da fantasia: existiu de fato. Como também a fidelidade dos súditos no cativeiro ao rei escravizado.
Quanto às referências à África no romance, revelam que ele as teve de africanos, ainda que não deixe claro que tipo de negro mina era Macambira, nem onde ficava o reino de seu pai, Munza. As indicações geográficas de seus informantes estariam provavelmente ausentes de um mapa europeu. E no texto de Coelho Neto, como na recordação colectiva dos africanos, juntam-se, numa espécie de fotomontagem, várias paisagens diferentes: as do Sael, as da savana, as do cerrado e as das florestas.
Em Jorge de Lima, as referências à África nos poemas negros são vagas, quando não indiretas. Às vezes, são simples enumerações de etnônimos e topônimos, como em
«Passarinho cantando»:
Congos, cabindas, angolas, também de Cacheo e de Bissao, (...) Fernando Pó, São Tomé, Ano Bom, Serra Leoa, Serra Leoa, Serra Leoa! Cabo Verdee Moçambique (...)

Em «História», chega a desconhecer o quanto gabamos os africanos por suas dentaduras perfeitas. Quando lhes faltam dentes, é porque os arrancaram para cumprir os ritos do grupo, como entre os imbangalas. E, no entanto, isto nos diz Jorge de Lima:
Era princesa. Um libata a adquiriu por um caco de espelho. Veio encangada para o litoral, arrastada pelos comboeiros. Peça muito boa: não faltava um dente (...)

A África, para Jorge de Lima, era uma fonte de palavras. De palavras quimbundas, umbundas, quicongas, fons e iorubanas, que ele usou com grande mestria, com uma percepção clara de seus valores sonoros e plásticos. Ninguém trouxe o vocabulário de origem africana para a poesia de língua portuguesa como ele. A sua África foi vocabular. E o seu negro, o transplantado para o solo americano. O crioulo. A sua poesia tem, na realidade, por tema a crioulização.
Num sujo mocambo dos «Quatro Recantos», quimbundos, cafuzos, cabindas, mazombos mandingam xangô na qual se somam e conciliam almas santa benditas (...) São Marcos, São Manços com o signo-de-salomão com Ogum-Chila na mão com três cruzes no surrão São Cosme! São Damião! Credo Oxum-Nila Amém.
Lembro agora Adonias Filho. "Luanda, Beira, Bahia" é um belo romance de um grande autor, um dos que melhor escreveram em prosa e numa prosa intensa, a que não faltou o sopro trágico na segunda metade do século passado. Aí estão "Memórias de Lázaro", "Corpo vivo", "Léguas da Promissão" e sobretudo esta obra-prima, "As velhas".
Em "Luanda, Beira, Bahia", a África só aparece nas abas do cenário, no qual se pinta o oceano. O que no romance se mostra são as franjas portuguesas da África colonizada, com os africanos como figurantes menores, quase estrangeiros, fora de um enredo no qual só há lugar para os mestiços e os negros assimilados. A África está sempre do outro lado, mesmo quando a ação se passa em Luanda ou na Beira.
Em 1969, dois anos antes do aparecimento de "Luanda, Beira, Bahia", António Olinto havia publicado "A Casa da Água". Vieram, mais tarde, "O rei de Keto" e "Trono de vidro", a completar a trilogia.
É com Olinto que a África entra de verdade em nossa literatura. Que eu saiba, foi ele o primeiro escritor brasileiro a fabular sobre uma realidade africana, ao transformar na estória de Mariana a história verdadeira de João Esan da Rocha, o ex-escravo ijexá que, ao retornar do Brasil, enriqueceu na Nigéria e construiu em Lagos a famosa «Water House», e ao transmudar em ficção a saga dos Olímpios do Togo, desde o Francisco, que, liberto, voltou da Bahia, até Sylvanus, que foi o primeiro presidente daquele país.
Alguém dirá que suas personagens principais são brasileiros e africanos abrasileirados que levaram o Brasil para a África, como antes o tráfico negreiro havia trazido a África para o Brasil. Apresso-me, porém, em dizer que a África não é, nos romances de Olinto, apenas pano de fundo ou cenário. Ela está viva nas acções das personagens, no bulício dos mercados, na longa conversação entre agudás, iorubás, sarôs e fons. Nesta página, acompanho as mulheres a saírem, madrugadinha, para os mercados. Noutras, entro de novo na «Water House» que eu conheci. Lá está o poço, com sua bomba d'água inglesa, que fez rico, na vida real, João Esan e, na ficção, Mariana. Revejo, a me abrirem a porta, D. Angélica da Rocha Thomas e Yevande Oyediran. Como figuras recriadas por Olinto.
Ainda mais vivas do que as do romancista nigeriano Cyprian Ekwenzi, em People of the City, também sobre Lagos e a comunidade brasileira. Ou as do filme de Ola Balogun, Black Goddess, filmado no Brazilian Quarter de Lagos e no Rio de Janeiro, tendo como cameraman José Medeiros.
Conheço dois bons romances sobre o quilombo de Palmares. "Ganga Zumba", de João Felício dos Santos, e "Tróia negra", de Jorge Landmann. Neste último, a África se revela não apenas como origem, mas também como persistência. As evocações africanas, ambundas sobretudo, são vivas e verdadeiras. O que é crioulo impregna o que é africano, e nem sempre dele se distingue, nas estruturas de poder, na arquitetura, nas relações de família e até nos objetos de Palmares, mas a África está no núcleo do quilombo, nos gestos e na alma da maioria de seus habitantes.
No livro de Landmann, Palmares recobra o seu nome autêntico, o nome que lhe deram os seus fundadores, Angola Janga, a Pequena Angola, e com ele, a sua alma.
Outro romance recente em que a África se engasta no Brasil é o de Alberto Mussa, "O trono da rainha Jinga". Mussa leu cuidadosamente os seiscentistas Antônio de Oliveira Cadornega, autor da História das guerras angolanas, e Giovanni António Cavazzi de Montecúcculo, que nos deixou a "Descrição histórica dos três reinos do Congo, Matamba e Angola", e sobre esses sólidos alicerces construiu seu enredo.
A estória começa na África, com a embaixada, chefiada pela futura rainha Jinga, que o angola Nbande enviou aos portugueses do enclave de Luanda. É, porém, entre os escravos no Brasil, em torno de uma sociedade secreta trazida da África, que ela se desenrola. As personagens negras pensam como africanos, comportam-se como africanos. Como quando Jinga, diante da incompreensão de um branco a quem tentara explicar que serenizara, ao passar, por meio de um despacho, a dor da perda de seu filho para outrem, isto lhe disse: Vossemecê não chega a ser estúpido. Mas tem mesmo cabeça de macaco. (E macacos eram todos os brancos, porque têm a pele branca, os pêlos negros e os lábios finos.) O que era óbvio para um africano não entrava no entendimento de um europeu.
Assim se dava com o cariapemba, uma das forças que regem o universo. No Brasil, entre os brasileiros, seria ele visto como o demônio. Mas não, entre os congos, e não, no romance de Mussa. Este sabe que se crê, na foz do Zaire, que o mal não aumenta nem diminui no mundo, apenas se altera a sua distribuição entre os seres humanos. Por isso, o cariapemba é, ao mesmo tempo, o poder de destruição e de proteção. Ao ajudar uma pessoa, causa ele inexoravelmente dano equivalente a outra. A cada ação positiva corresponde uma negativa, e vice versa, para que persista a relação constante e equilibrada entre bem e mal.
Os livros de Antônio Olinto, Jorge Landmann e Alberto Mussa começam a colocar a África na literatura brasileira. E outros, excelentes, escritos para crianças por Rogério Andrade Barbosa e Heloisa Pires Lima.
Em "Histórias da Preta", desta última, estão as distintas e muitas Áfricas, com a realidade e a imaginação a se entretecerem, desde a criação do mundo até os nossos dias.
Que a África só agora comece a ser tema de nossa literatura infantil confirma a justeza de meu espanto. Mas uma voz miúda dentro de mim diz-me que isso não me devia maravilhar, pois havia motivo ainda maior de pasmo: o não terem os brasileiros escrito um só grande romance sobre o tráfico de escravos o tráfico de escravos que fez do Brasil o Brasil, um romance como "Pedro Blanco, el Negrero", do cubano Lino Novás Calvo.
Sobre o tema, só me recordo de um conto de Virgílio Várzea, «O velho Sumares». De causar ainda maior pasmo é que tenhamos esperado por um autraliano-britânico, Bruce Chatwin, para reimaginarmos, em "The Viceroy of Ouidah", a vida do maior traficante de escravos do século XIX, um baiano chamado Francisco Félix de Souza.

Fonte: União dos Escritores Angolanos (www.uea-angola.org)

"Viagem ao universo africano", por Adelto Gonçalves

Para quem quer conhecer as literaturas africanas de expressão portuguesa Angola e Moçambique: experiência colonial e territórios literários, de Rita Chaves, é um caminho seguro. Reunindo textos que abrangem um esforço iniciado ao final da década de 1980, quando o interesse no Brasil pelas culturas africanas ganhou maior intensidade, e chegam até o começo do novo século, o volume é, porém, o resultado de um trabalho de três décadas de paixão pela literatura africana de Língua Portuguesa, pois foi em 1978, sob a orientação de Vilma Arêas, na Universidade Federal Fluminense, que a autora descobriu o seu caminho para o continente africano. Desde então, não se limitou apenas àquelas viagens interiores que se costuma fazer através dos livros, mas percorreu in loco a África do Atlântico ao Índico, tendo sido professora visitante na Universidade Eduardo Mondlane, em Maputo, entre os anos de 1998 e 2000.
Dividido em três seções, o livro de Rita Chaves, na primeira parte, "Signos de identidade na literatura angolana", discute a nova literatura nascida especialmente a partir da independência do país em 1975, analisando especificamente autores como José Luandino Vieira, Agostinho Neto, Pepetela, José Eduardo Agualusa, Ana Paula Tavares e Ruy Duarte de Carvalho. Num dos oito ensaios que compõem essa parte, "O passado presente na literatura angolana", a autora, baseada nas idéias de Frantz Fanon (Paris, Pour la révolution africaine, François Maspéro, 1964), a partir da experiência francesa na Argélia, tenta compreender o colonialismo português em Angola, observando que também ocorreram tentativas de apagamento da história anterior à chegada dos europeus. O que justificaria a idéia de libertação que marca o início do processo literário angolano, repetindo, guardadas as distâncias e proporções, o que ocorreu no Brasil no século XIX, quando os românticos procuraram fazer do índio um dos símbolos da identidade brasileira.
"Após a independência", diz a autora, "a essa noção de passado instaurado no período pré-colonial, junta-se outra. A euforia da vitória converte em passado o próprio tempo colonial. É o momento então de centrar-se nesse período como forma de engrandecer o presente. A celebração eleva as antinomias: aos heróis do passado remoto se vão aliar os heróis que participaram na construção desse presente em contraposição àqueles que o discurso colonialista apresentava como vencedores do mal".
Em sua análise, Rita Chaves constata uma segunda fase na literatura angolana, a idade adulta, em que, passada a euforia dos primeiros anos da independência e depois do fracasso da experiência socialista e de guerras civis devastadoras, o que há é a injustiça do presente, já que, como diria Antônio Lobo Antunes, o destino de todas as revoluções seria, afinal, sempre o de substituir uma aristocracia por outra.
"A continuidade da guerra, as imensas dificuldades no cenário social, o esvaziamento das propostas políticas associadas ao estatuto da independência, a incapacidade de articular numa concepção dinâmica a tradição e a modernidade compuseram um panorama avesso ao otimismo", diz a autora, observando que, em função dessa realidade imutável, em que o colonizador já não pode ser responsabilizado como antes, regressa-se ao passado outra vez "para se tentar compreender o presente desalentador". É nesta situação em que viveria o escritor angolano de hoje, buscando no passado – às vezes, num passado remoto e até mitológico – uma maneira de vislumbrar hipóteses para um mundo que, por razões diversas e em variados níveis, lhe surge como um universo à revelia".
Já na segunda parte do livro, "A poesia em português na rota do Oriente", formada por quatro ensaios e uma entrevista com José Craveirinha, Rita Chaves não busca compreender a literatura moçambicana de hoje como resultado do colonialismo português como fez em relação à literatura angolana, embora haja paralelismos bem evidentes nos dois processos. Concentra-se, isso sim, na análise da obra de poetas como José Craveirinha, Eduardo White, Rui Knopfli e Luís Carlos Patraquim.
Em "Eduardo White: o sal da rebeldia sob os ventos do Oriente na poesia moçambicana", ensaio publicado também em África e Brasil: letras em laços (São Caetano do Sul-SP, Yendis Editora, 2006) de Maria do Carmo Sepúlveda e Maria Teresa Salgado (organizadoras), procura compreender a obra de um dos nomes mais expressivos da poesia moçambicana de hoje, a partir de suas ligações com a Ilha de Moçambique, a presença mais marcante hoje no imaginário poético de Moçambique. "Ali, o autor vai buscar as sedas, o m´siro, as miçangas, as oferendas de Java, o séqüito ajawa, o curandeiro macua, o monge birmanês, com que compõe o desenho do universo em que projeta a sua identidade", diz a autora.
Na terceira parte, "Literaturas em Língua Portuguesa: a utopia em trânsito sob os vento do Império", que reúne mais quatro ensaios, chama a atenção o texto "O Brasil na cena literária dos países africanos de Língua Portuguesa" em que a autora procura estabelecer a utopia que a terra brasileira sempre representou no imaginário africano, concluindo que, felizmente, os escritores africanos souberam catalisar numa chave progressista as imagens (brasileiras) que convidavam à mudança. E conclui que esses escritores souberam compreender como a realidade brasileira – povoada pelas injustiças e pelos preconceitos que conhecemos – poderia auxiliá-los na mobilização em favor de "um projeto conduzido pelo sentido da liberdade e outras utopias".
Além de ensaios bem elaborados, o livro de Rita Chaves traz uma entrevista que ela fez com o poeta moçambicano José Craveirinha (1922-2003), em fevereiro de 1998, em sua casa em Maputo. Nela, Craveirinha, filho de pai português e mãe africana, entre outros tantos temas, diz da influência que ele e outros autores moçambicanos receberam na década de 40 e 50 de escritores brasileiros, como Jorge Amado e Rachel de Queiroz, e, especialmente, daqueles jornalistas e cronistas que escreviam na célebre revista O Cruzeiro, como David Nasser, embora sua formação inicial tenha sido mesmo por meio de Eça de Queirós, Antero de Quental, Guerra Junqueiro, Camões e Soeiro Gomes e ainda dos franceses Victor Hugo e Zola.
Curiosa é também esta frase: "(...) hoje andam aí pelas ruas grande parte daqueles que de fato lutaram, mas os que estão nas cadeiras são precisamente aqueles que não lutaram. E que engordam desavergonhadamente. E a gente olha e fica triste, mas paciência", dizia para, em seguida, reconhecer que ficava admirado quando ia a Portugal e recebia alguma homenagem: "(...) Há qualquer coisa que não bate bem: ou eu, ou eles! Uma das mais importantes comendas de Portugal foi concedida a mim. Depois de tudo, toda a comenda que eu deveria receber de Portugal era uns pontapés no rabo, mas não uma comenda. Ora, isso faz com que fiquemos um pouco duvidosos de nós próprios e ao mesmo tempo isso retira um determinado ônus de cima da cabeça dos portugueses", dizia, com bom humor. Até porque teve oportunidade de constatar que o Portugal que o homenageou na década de 1990 não era o Portugal das décadas de 60 e começo de 70 que ele combateu em Moçambique, quando, então, passou um bom tempo na cadeia.

Escrito em 21/9/2007 (link Resenhas) do site www.cronopios.com.br.
Livro resenhado: ANGOLA E MOÇAMBIQUE: EXPERIÊNCIA COLONIAL E TERRITÓRIOS LITERÁRIOS, de Rita Chaves. São Paulo: Ateliê Editorial, 295 págs., 2007. atelieeditorial@terra.com.br

Sobre a autora:
Professora de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa da Universidade de São Paulo, Rita Chaves, hoje, dirige o Centro de Estudos Portugueses da instituição e é pesquisadora associada do Centro de Estudos Afro-Asiáticos da Universidade Cândido Mendes, do Rio de Janeiro. Entre outros títulos, publicou A formação do romance angolano e é co-organizadora de Literaturas em movimento – hidridismo cultural e expressão e exercício crítico e de Brasil/África: como se o mar fosse mentira.


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Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de:
"Gonzaga, um Poeta do Iluminismo" (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999);
"Barcelona Brasileira" (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002)
e "Bocage – o Perfil Perdido" (Lisboa, Caminho, 2003).
E-mail: adelto@unisanta.br