domingo, 10 de agosto de 2008

"África - um novo olhar", de José Maria Nunes Pereira

Transcrição de trechos da obra de José Maria Nunes:

Introdução
“As pesquisas arqueológicas levaram à descoberta, em 1974, no Quênia, do esqueleto de uma mulher a quem apelidaram de Lucy, que seria a Eva da Humanidade. Essa pesquisa, feita pela Universidade da Califórnia, investigou o material genético de 189 mulheres de diversas etnias e concluiu que todas seriam descendentes de uma única, Eva, que viveu na África enter 160 e 200 mil anos atrás.
O aparecimento dos hominídeos e dos seres humanos deu-se quando o clima africano se apresentava como o mais favorável do planeta. O solo começava a arrefecer e surgiram as savanas. Até hoje, só foram encontrados vestígios seus na África.
Cerca de três milhões de anos depois, surge o Homo habilis com o cérebro maior do que os hominídeos. Fabricava utensílios de pedra afiada, utilizava o fogo e se alimentava de carne. Suas ossadas foram encontradas na Tanzânia.
Em seguida, aparece o Homo erectus, há 1,5 milhão de anos, que também se desenvolveu primeiro na África. Finalmente, há cem mil anos atrás aparecem, neste continente, vestígios do Homo sapiens, que teria partido da África para colonizar outras partes do mundo.

A palavra África
As prováveis origens do nome África derivam do norte do continente. Uma delas é Afrig, nome de uma tribo berbere do antigo império de Cartago. A segunda, e que prevaleceu por séculos, foi o de Líbia.
No século XVI, adotou-se o nome de Afriquyia, antiga designação árabe, mais tarde latinizada para África.

Dimensões geofísicas e população
Possui ela uma superfície de 30.367.618 km2, sendo o terceiro continente em extensão, após a Ásia e as Américas.
Com uma população de 850.588 milhões de habitantes (2003), ela representa 14,3% do total mundial (6,3 bilhões de habitantes).
É o continente mais quente do mundo, com temperatura média acima dos 20ºC. É também o mais árido, com 30% dos desertos do planeta, sendo o maior deles o Saara, com mais de oito milhões de km. Este deserto, até certa de 3.000 a.C., era uma área verdejante.
No outro extremo climático, destaca-se a grande floresta equatorial que, desde a região central do Congo/Zaire, se prolonga pela costa atlântica até Gana, no Golfo da Guiné.

As línguas
O árabe é a língua africana mais falada da África. Sete dos 53 países do conti-nente têm o árabe como língua oficial.
A diversidade lingüística é excepcional: possui cerca de duas mil línguas com suas variações dialetais.
Eis um quadro com as línguas africanas mais faladas:- Com mais de 130 milhões: árabe- Com mais de 50 milhões: haussa (Nigéria e países vizinhos), suaíli (Tanzânia, Quênia e Uganda)- Com mais de 20 milhões: amárico (Etiópia) e berbere (Marrocos e Argélia)- Com mais de 10 milhões: ioruba e ibo (Nigéria), zulu e xhosa (África do Sul), mandinga (vários países do oeste africano), malgache (Madagascar), lingala (Con-go/Zaire) e kikongo (norte de Angola).Fonte: Africa at a Glance. Instituto Africano da África do Sul, 1998.

As religiões
Muçulmanos – 360 milhõesCristãos (católicos e evangélicos) – 220 milhõesReligiões tradicionais – 115 milhõesOutras – 5 milhõesFonte: L’Atlas Jeune Afrique, Paris, 1993.

Visão geral
Depois de ter sido o berço da Humanidade, a África foi, a partir de cerca de 3.000 a.C., palco de uma das mais brilhantes civilizações do mundo, a egípcia. Suas raízes se encontram desde 5.000 a.C., na Núbia, no vale do Nilo, estendendo-se até os planaltos etíopes, a bacia do Chade e o coração do continente negro, o rio Níger. Nessa época, o Saara não havia ressecado e constituía uma verdejante encruzilhada de povos.
O Egito, após dois mil e quinhentos anos de irradiação de ciência e cultura, cai em poder dos persas, em 525 a.C.
Entretanto, um novo poder surgia: os fenícios, vindos do fundo do Mediterrâ-neo. Por volta de 1.200 a.C., eles fundaram Cartago, na atual Tunísia. A partir daí seu comércio deu-lhe o domínio da região, que ia desde a Líbia até o Marrocos, além da Ibéria e da Sicília.
Depois de prolongadas guerras guerras púnicas (200 a.C.), Cartago perde o poder para Roma, que passará a dominar o norte da África durante cinco séculos.
Segue-se a grande vaga árabe, a partir do século VII, que se expande do Egi-to ao Marrocos, ocupando ainda a Abissínia (atual Etiópia) e a Península Ibérica por vários séculos.
No século XVII, a Etiópia se tornou um império com a conquista dos povos vizinhos; tornou-se assim uma referência de vitória pela independência, um símbolo para os africanos e para toda a diáspora negra. Encarnação do pan-africanismo, sua capital, Adis Abeba, é a sede da União Africana, desde 1963. As cores do império etíope, verde, amarela e vermelha, estão nas bandeiras de muitos países africanos independentes. Hoje em dia, estão também nos gorros de milhões de afro-descendentes espalhados pelo mundo e participando da imensa diáspora negro-africana.
Voltando aos séculos XVI e XVII, defrontamo-nos com tráfico de escravos que os europeus destinavam para as plantações das Américas, sobretudo para o Brasil, destino de 40% deles. No seu conjunto, o tráfico para o mundo árabe e para as Américas foi o responsável pela expulsão da África de 20 milhões de seres huma-nos. Isso contribuiu em muito para a estagnação demográfica e econômica do con-tinente negro.
Somente a partir de fins do século XIX, os europeus iniciaram a conquista da África, que viria a redundar na ocupação de 90% de todo o continente.
O processo de descolonização das colônias de exploração, embora submetido a pressões violentas, desenrolou-se de um modo geral sem a realização de guerras de independência. A burocracia e a burguesia autóctones assumiram o poder político aos poucos, mantendo-se, em cada país, os laços de dependência que caracterizam o neocolonialismo.
Já o processo de descolonização nas colônias de povoamento envolve uma guerra de independência assumida como luta de libertação anticolonialista. Foram os casos de Argélia, Angola, Moçambique etc. As independências obtidas sob controle das minorias brancas, como a África do Sul, o Zimbábue e a Namíbia, não esgotaram o processo de descolonização. A África do Sul, por exemplo, só conquistou um governo de maioria negra e o fim do “apharteid” em 1994. A economia colonial é essencialmente destrutiva, predatória de recursos hu-manos e naturais, não se preocupando com a renovação dos fatores de produção. Utilizando baixa tecnologia e pequena inversão de capital, ela visa extensiva e predatoriamente a terra e não se preocupa com a manutenção em bom estado da força de trabalho dos africanos.
A exploração colonial, pelos efeitos que produz, tem seus limites crescentemente estreitados. Mesmo o caráter econômico desses limites é determinado sobretudo pelos atos políticos de resistência e luta dos colonizados.
Isto é: a coerção e a superexploração empregadas geram revoltas e exigem um aparelho repressor cada vez mais oneroso, instigador por sua vez de maiores revoltas.

As ideologias do colonialismo
O colonialismo, além de subjugação política e econômica, exerce também uma dominação cultural eurocêntrica. Ele pressupõe a crença numa só cultura, cuja vali-dade e ápice encontram-se na civilização européia ocidental.
O darwinismo, por seu turno, oferece outro instrumento à ideologia colonial, ao afirmar que a evolução se fundamenta num processo competitivo na luta pela vida, que tem como conseqüência a sobrevivência dos mais fortes (seleção natural das espécies).
O colonialismo lança mão também da Antropologia: a partir de 1920, com o funcionalismo, escola antropológica então dominante, não precisa mais justificar teórica e moralmente a dizimação de populações e culturas. Vale tudo.

Racismo, ideologia orgânica do colonialismo
O racismo resume e simboliza a relação fundamental que une o colonizado e o colonizador. É a ideologia-chave, organizadora, do colonialismo. Não há colonialismo sem racismo. Aliás, toda forma de dominação tem junto a si uma ideologia que procura justificá-la, que pretende torná-la irremediável, isto é, dentro do curso “na-tural” da vida.
A versão eurocêntrica da história pretende fazer-nos crer que o racismo é um fenômeno que, através dos tempos, tem vitimado os “povos de cor”. Aceitar isto seria considerar o racismo como a-histórico, atemporal. Diria um ingênuo: “Sempre existiu; logo, sempre existirá”. Leopold Senghor lembra que “o racismo --- etonocentrismo carregado de dife-renças raciais, reais ou imaginárias --- não tem mais de quatro séculos”. O racismo nasce, portanto, com a expan-são européia, da qual deriva o tráfico escravo.
O racismo, como ideologia elaborada, é fruto da ciência européia a serviço da dominação sobre a América, África e Ásia. A ideologia racista se manifesta a partir do tráfico escravo, mas adquire o estatuto de teoria após a revolução industrial européia.
Aimé Cesaire, em seu “Discurso sobre o Colonialismo”, escrito no imediato do pós-guerra, salienta que Cortez e Pizarro pilhavam e matavam na conquista da A-mérica, mas que nunca afirmaram “serem mandatários de uma ordem superior”.
E ressalta: “Os hipócritas só vieram mais tarde”. (Ou seja, com a ocupação colonial nascida do capitalismo).
Escreve ainda: “O grande responsável é o pedantismo cristão, por ter propos-to as equações desonestas: cristianismo = civilização e paganismo = selvageria. As abomináveis conseqüências desse racismo colonial vitimaram índios, asiáticos, afri-canos negros e árabes.” Características da atitude racista
Considerado como um conjunto de condutas, de reflexos adquiridos, exercidos desde a primeira infância através da família, da escola e da prática social em geral, o racismo, segundo Memmi, está tão espontaneamente incorporado aos gestos, às palavras, mesmo as mais banais, que parece constituir uma das mais sólidas estru-turas da personalidade colonialista.

O Pan-Africanismo
Este termo foi utilizado pela primeira vez por Sylvester Williams, advogado negro de Trinidad, du-rante uma conferência promovida por intelectuais negros em Londres, em 1900. Williams não enfatizava ainda a unificação da África, dividida pelas potências européias. Ele clamava contra a expropriação das terras dos sul-africanos negros pelos ingleses e reivindicava o direito dos negros à sua própria personalidade. Essas reivindicações ocasionarão o organização do I Congresso Pan-Africano, realizado em Paris, em 1919, sob a liderança de W.E.B. Du Bois. A Negritude
Formulada pela primeira vezpelo poea e político antilhano Aimé Césaire, a negritude teve em Leopold S.Senghor seu principal teórico: "Objetivamente, a ne-gritudeé um fato: uma cultura. É o conjunto de valores --- econômicos é políticos, intelectuais e morais, artísticos e sociais --- não somente dos povos da África Negra mas também das minorias negras da América, Ásia e Oceania. É a militância assumir e divulgar os valores da civilização do mundo negro, atualizá-los e fecundá-los."
Nessa linha, criou-se a revista "Présense Africaine", em Paris, em 1947, por intelectuais negros preocupados em descolonizar o estudo da história africana, deformada pelo colonialismo. A Negritude nasceu como a expressão cultural do Pan-Africanismo.

São 54 os Estados africanos. Destes, eis os de língua portuguesa:
Angola (capital: Luanda) - 13 milhões hab., independente desde 1975.
Cabo Verde (capital: Praia) - 4 milhões hab., independente desde 1975.
Guiné-Bissau (capital: Bissau) - 36 milhões hab., independente desde 1974.
Moçambique (capital: Maputo) - 17,5 milhões hab., independente desde 1975.
São Tomé e Príncipe (capital: São Tomé) - 200 mil hab., independente desde 1975.

Alguns grandes líderes africanos:
Albert Luthuli (1898-1967), chefe Zulu e pastor metodista, recebeu o prêmio em 1960 Nobel da Paz, pela sua luta contra o “apharteid”.
Amilcar Cabral (1924-1973) nasceu na Guiné-Bissau, filho de caboverdianos. Foi o mais destacado líder e teórico da luta de libertação das colônias africanas de Portugal. Fundou o PAIGC (Partido Africano da Independência da Guiné e do Cabo Verde), em 1956.
Kwame Nkrumud (1909-1972) foi o maior líder pan-africano do pós-guerra. Liderou a luta pela independência da Costa do Ouro (atual Gana), tornou-se primei-ro-ministro em 1957 e presidente em 1960. Deposto por um golpe militar em 1966, exilou-se na Guiné, onde faleceu.
Mohandas K. Gandhi (1869-1942), o Mahatma (Grande Alma). Iniciou sua luta na África do Sul contra o racismo aplicando a resistência pacífica e a desobediência civil sem violência. Nzinga M \'Bandi (1582-1663), Rainha de Matamba, símbolo da resistência aos portugueses.
Patrice Lumumba (1925-1961). Principal líder da Independência da República Democrática do Congo (ex-Zaire), foi seu primeiro ministro em 1960. Foi assassinado em 1961, tornando-se o mártir das independências africanas.
Shaka (1787-1828) um dos maiores guerreiros da História. Criou o império Zulu à moda de Esparta, que se espalhou por cinco países da África Austral.
W.E.B. Du Bois (1868-1963) é considerado o pai do pan-africanismo. Foi um dos mais importantes líderes políticos negros do século XIX. Morreu no exílio, em Gana, com 95 anos, onde pôde ver os primeiros frutos do seu sonho pan-africanista.

Perfil do autor:
José Maria Nunes Pereira tem 50 anos; é doutor em Sociologia/Estados Africanos pela USP, professor titular de História da África na Universidade Cândido Mendes (RJ) e professor de pós-graduação do Instituto Humanidades.
Militante de Movimentos de Libertação, de Direitos Humanos e Defesa da Raça Negra. Fundador do Centro de Estudos Afro-Asiáticos, em 1973.
Tem trabalhos acadêmicos publicados em revistas do Brasil, Argentina, França e África do Sul.

Fonte: “África – um novo olhar”, de José Maria Nunes Pereira. 88 páginas, 1ª edição, Cadernos CEAP, RJ, 2006.

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